Foto://www.google.com  
                    
                  NO PRINCÍPIO ERA O  CERRADO 
                            Cocalzinho de Goiás    15-11-1983 
                      [Relato da visita à Lagoa do Pato Selvagem com Milton Nocetti, 
                      em 1979.] 
                    
                  Um dia quente, com um  resto de umidade no ar. 
                    O cerrado esturricado, ressequido, sequioso, revesado e entorpecido pelas  queimadas intermitentes, ressuscitado nas águas de fim de ano, ressecado e  empretecido, outra vez e outra vez mais, nos longos períodos de estio. Nem dá  para acreditar que é a mesma a vegetação da época das chuvas: esses paus secos,  carcomidos pelas formigas e cupins! 
   
                    E no meio dos arbustos ralos, secos, ainda vicejam as flores mais teimosas,  diminutas, como hastes coloridas sobre escombros, entulhos ou dejetos.  Raquíticas, mas esbeltas. Os cajus nativos amarelecidos apenas dão frutos  pequeninos. As mangabeiras ainda conservam o brilho da sua umidade guardada, a  luminosidade recôndita dessas plantas avaras, que armazenam seu humor vital sob  as cascas rudes, com que se protegem dos insetos.  
                    Os pequizeiros têm folhas densas e estranhamente aveludadas sobre troncos  retorcidos.  
   
                    Os pequis são os sobreviventes pré-históricos dos cerrados, com seus bagos  testiculares, balançantes e arredondados. Neles as rolinhas pousam suavemente e  as maitacas revoam estrepitosamente.  
                    No horizonte, por detrás da Lagoa do Pato Selvagem, em Cocalzinho de Goiás, no  caminho do vale, ainda é possível divisar algum buritizeiro, alguma palmeira  babaçu que escapou do arado das fazendas, do avanço do arroz goiano e do capim  braquiária das novas pastagens. 
   
                    O vendedor, gordo e suorento, garantia o paraíso, citava versos de Garcia Lorca  e enaltecia a fertilidade da terra. Ele entendia menos da terra do que nós, mas  rezava a novena da imobiliária, com um sotaque paulistano, urbano e citadino.  Em verdade, a terra era ruim, das piores. As franjas de terra mais  privilegiadas já haviam sido escolhidas pelos mais experientes, em uma primeira  etapa. Sobraram as mais pobres, os lotes mais pelados, os lotes pela  ignorância, a mais-valia dos sabidos. O pessoal da região escolhe a terra,  fareja, cisca e arranha a superfície da gleba, tentando a sua potencialidade. Depois  se entrega a ela para dela tirar algum proveito, o maior benefício. A lida da  terra, a escolha, o contágio é uma arte, um ofício, é a intimidade desenvolvida  em anos de observação e experimentação, de diálogo silente e persistente. Essas  terras planaltinas são caprichosas, guardam cupins e brocas, azedam e  envenenam, com sua acidez, a planta exótica, a muda menos resistente, requer  correção e manejo. 
   
                    A abelha negra corta os brotos mais tenros, picota o caule mais resistente,  penetra-o até domá-los, vencê-los, quebrantá-los e exterminá-los. A formiga  qüem-qüem vem de noite, em bandos, e ataca a muda recém-plantada e não deixa  uma folha. Corta a guia da planta, subjuga-a, deixa sobre ela um visgo  azarento: a planta definha, atrasa, às vezes morre, esquálida e desfolhada, sem  alento.  
                    Desenvolver um jardim sobre o cerrado exige calcário e adubo, trato permanente  e, sobretudo, resignação e paciência. E muito dinheiro. A falta de umidade  atrofia as melhores espécies, o sol de inverno, o vento frio e seco desbasta as  últimas folhagens das plantas menos aclimatadas. Há que descobrir a vocação da  terra, ter sorte de encontrar as mudas mais fortes, sem pragas... 
                    Os longos períodos de chuva encharcam a terra, afogam a planta. Os longos  períodos de seca queimam e devastam qualquer plantação! A terra endurece, solta  névoas de pó, esquenta e esturrica, o gramado acinzenta e queima por combustão  natural ou pelo descaso dos homens. 
                     
                   
                  O planalto goiano nessa  beirada que faz fronteira com o quadrilátero brasiliense, é um deserto úbere  onde os vales podem ter humus e fertilidade e as encostas costumam estar  lavadas, encascalhadas, palmilhadas de piçarra quente e de barro espesso,  recoberto de capim “brabo”, de minúsculos butiás e mato ralo. Esses galhos  retorcidos, essas folhas secas e enegrecidas são pródigas de flores minúsculas  e graciosas na primavera e renascem com mais força, com mais ímpeto, à chegada  das primeiras chuvas. 
E parece que o céu desaba sobre elas! 
 
As colinas ondulantes, alguns vales profundos e extensos, um imenso cenário de  nuvens densas, alvas, extensas, acinzentadas, volumosas, leves e movediças, dão  a dimensão exata dessa imensidão! 
 
As nuvens do cerrado são únicas, desinibidas ocupam o seu espaço com soberba e  arrogância tranquila, deslizam pausadamente no horizonte interminável, povoam,  delineiam e definem a paisagem.  Nas  chuvas, as nuvens são teatrais! São como cenários errantes, mambembes. Elas  despencam em cortinas aquáticas, movem-se, deslizam  de um extremo a outro. São as chuvas  localizadas, as chuvas isoladas. É possível identificá-las no horizonte frágil,  avançando ou recuando pelos espaços ensolarados, sobre o infinito firme e  luminoso.  
 
Essas chuvas são esperadas, desejadas e veem caprichosas e devastadoras, não  raro sulcando e erodindo a terra, derrubando árvores, lavando o resto de humus  do solo.  
E é, destarte, uma chuva bendita! Ela faz renascer tudo, em pouco tempo! 
                
  |